domingo 23 2014

'Bisturi inteligente' identifica tecidos cancerígenos

Câncer

Invenção promete melhorar precisão de operações para retirada de tumores

Pesquisadores demonstram o 'bisturi inteligente' usando um pedaço de músculo animal
Pesquisadores demonstram o 'bisturi inteligente' usando um pedaço de músculo animal (Luke MacGregor/Reuters)
Cientistas desenvolveram um 'bisturi inteligente' capaz de identificar imediatamente se um tecido cortado durante uma cirurgia é cancerígeno ou não. No primeiro estudo que testou a invenção, a iKnife (como é chamado) diagnosticou amostras de tecidos de 91 pacientes com 100% de precisão. Os dados, que são fornecidos de maneira instantânea pelo instrumento, podem demorar até meia hora para serem realizados em laboratório. A descoberta foi realizada por pesquisadores do Imperial College London e publicada nesta quarta-feira no periódico Science Translational Medicine
Em cânceres que envolvem tumores sólidos, a remoção cirúrgica é, normalmente, a melhor alternativa. Ao retirar o tumor, o cirurgião retira também tecidos saudáveis em volta, para ter uma margem de segurança e não deixar para trás células cancerígenas. No entanto, frequentemente é impossível dizer, apenas pela aparência do tecido, se ele é ou não cancerígeno.
Uma em cada cinco pacientes com câncer de mama que passam por uma cirurgia, por exemplo, precisa fazer uma segunda operação para remover o câncer por completo. Em casos nos quais não há uma certeza se o tecido na margem de segurança é ou não cancerígeno, amostras são enviadas para exame laboratorial — nesse meio tempo, o paciente permanece sedado.
Bisturi elétrico — A iKnife foi idealizada com base na eletrocirurgia, uma tecnologia inventada na década de 1920, que é muito usada atualmente. Esses bisturis usam corrente elétrica para aquecer o tecido, o que ajuda a minimizar a perda sanguínea. Ao fazer isso, eles vaporizam amostras do tecido cortado, criando uma fumaça que, normalmente, é sugada por sistemas de extração.
Zoltan Takats, idealizador do bisturi, percebeu que essa fumaça poderia ser rica em dados biológicos. Para criar o aparelho, ele conectou um bisturi elétrico a um aparelho que identifica diferentes substâncias químicas presentes em uma amostra. Diferentes tipos de células produzem milhares de metabólitos (substâncias resultantes de reações químicas) em diferentes concentrações. Isso significa que o perfil biológico dos produtos químicos em uma amostra pode revelar informações sobre o estado do tecido em questão.
Pesquisa — Para o estudo, os pesquisadores usaram primeiramente a iKnife para analisar amostras de tecidos coletados de 302 pacientes que passaram por cirurgia. Nessa fase, eles coletaram informações sobre as características de milhares de tecidos cancerígenos e não cancerígenos, incluindo tumores cerebrais, de pulmão, estômago, colo e fígado, para criar um volumoso banco de dados.
Com a nova biblioteca organizada, a iKnife testou 91 tecidos — em todos, o diagnóstico feito pelo dispositivo estava de acordo com o diagnóstico pós-operatório realizado nos tecidos. “Esses resultados dão evidências de que a iKnife pode ser usada em diferentes tipos de cirurgias para o câncer”, diz Takats. “Ela fornece informações quase que instantaneamente, permitindo que os cirurgiões realizem procedimentos com um nível de precisão que não era possível. Acreditamos que ela tem o potencial de reduzir os índices de recorrência de tumores.”

Óculos permitem a médicos detectar células cancerígenas

Pesquisa

Tecnologia, que está sendo desenvolvida nos EUA, pode garantir que todas as células tumorais de um paciente sejam retiradas em uma mesma cirurgia

Cientistas americanos trabalham para desenvolver óculos de alta tecnologia que permitirão a médicos diferenciar células cancerígenas das saudáveis. Dessa maneira, em uma cirurgia para retirada de um tumor, os profissionais poderiam identificar mais facilmente as células doentes, de modo a garantir que nenhuma delas permanecesse no corpo do paciente. O equipamento é desenvolvido na Universidade de Washington, em St. Louis, nos Estados Unidos, e foi testado pela primeira vez nesta semana durante uma cirurgia para a retirada de um nódulo de mama em uma paciente.
A cirurgiã Julie Margenthaler usa os óculos de alta tecnologia durante cirurgia de retirada de um tumor
O procedimento padrão para a retirada de um câncer consiste em remover o tumor e também parte do tecido em volta dele – que pode ou não conter células cancerígenas. Esse tecido, então, é analisado e, caso apresente células tumorais, é comum que se indique uma nova cirurgia para a retirada do restante do tecido. Se os óculos se provarem eficazes nos próximos testes, eles podem diminuir ou até eliminar a necessidade dessas cirurgias adicionais, evitando mais estresse e gastos aos pacientes.
Segundo Julie Margenthaler, professora da Universidade de Washington em St. Louis, que coordenou a cirurgia na qual os óculos foram testados, entre 20% e 25% das mulheres que têm tumores na mama retirados precisam passar por uma segunda operação. “A tecnologia atual não mostra de forma adequada a extensão do câncer na primeira cirurgia”, diz.
Em entrevista ao site de VEJA, ela explicou que a cirurgia a qual conduziu fez parte de uma primeira etapa de testes em torno do óculos — ou seja, ainda não apresentou resultados definitivos. "A cirurgia foi um sucesso por diversos motivos – nós esperávamos conseguir visualizar pelo óculos um nódulo específico, e isso foi o que de fato observamos”, afirmou. “Estudos futuros deverão focar em usar esses óculos para determinar se eles são eficazes em remover toda a extensão do câncer. Nós planejamos fazer uma pesquisa com de 20 a 25 pacientes para confirmar o sucesso observado nessa primeira etapa.”
Os óculos, desenvolvidos pela equipe do professor de radiologia Samuel Achilefu, contêm uma tecnologia de vídeo criada especificamente para o objeto e um display. Quando utilizados, é preciso injetar no paciente uma substância de contraste que, em contato as células cancerígenas, as torna brilhantes e faz com que fiquem da cor azul quando vistas através das lentes. Um estudo anterior sobre a tecnologia revelou que ela é capaz de detectar tumores muito pequenos, de 1 milímetro de diâmetro (uma espessura equivalente à de dez folhas de papel sulfite).

Planos de saúde terão de avaliar hospitais e médicos

Saúde suplementar

Medida da ANS entrará em vigor no próximo mês. Operadora que não informar a qualificação dos serviços aos clientes será multada em 35 000 reais

A partir de março, planos de saúde serão obrigados a informar a qualificação da rede de serviços, incluindo médicos e hospitais
A partir de março, planos de saúde serão obrigados a informar a qualificação da rede de serviços, incluindo médicos e hospitais (Thinkstock)
A partir do mês que vem, todas as operadoras de planos de saúde serão obrigadas a informar aos clientes indicativos de qualidade de sua rede de prestadores de serviço. Segundo o diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), André Longo, hospitais, laboratórios e médicos serão qualificados de acordo com uma série de critérios estabelecidos pela agência.

O resultado dessa avaliação deverá ser publicado pelas operadoras em todo o material de divulgação de sua rede assistencial, nas versões on-line e impressa. A iniciativa faz parte do programa Qualiss, desenvolvido pela ANS para tentar melhorar o controle sobre a qualidade do serviço prestado.

“O programa vai pontuar, por um conjunto de atributos de qualificação, tanto os profissionais quanto a rede hospitalar, clínica e de laboratórios que têm convênio com operadoras. "Queremos avaliar a qualidade desse serviço que está sendo prestado ao consumidor para dar mais segurança e, também, para dar uma divulgação desses indicadores e facilitar a escolha do consumidor quando for buscar algum tipo de serviço”", diz Longo.

Avaliação — Entre os atributos que serão medidos estão, entre os hospitais, taxa de infecção hospitalar, taxa de mortalidade cirúrgica, acessibilidade à pessoa com deficiência, tempo de espera na urgência e emergência e satisfação do cliente. Os médicos que atendem em consultórios também serão avaliados. "“Vamos ver se ele tem residência médica, se tem alguma especialização, se atende aos registros necessários da Vigilância Sanitária, se participa de programas como o Notivisa, que é de notificação compulsória de eventos junto à Vigilância Sanitária"”, explica o diretor-presidente da ANS.
As operadoras que não publicarem as informações passadas pelo prestador de serviço receberão multa de 35.000 reais.

Reclamações — De acordo com Longo, também em março, a ANS atuará com o mesmo rigor com todos as reclamações recebidas contra planos de saúde, incluindo as falhas não relacionadas à cobertura. Hoje, a agência só dá prazo máximo para as operadoras responderem esse tipo de problema. A partir do dia 17 do mês que vem, as reclamações sobre outros assuntos, como reajustes abusivos e quebras de contrato, receberão o mesmo tratamento.

“Hoje, essas demandas são tratadas sem um fluxo de tempo para a resposta. Isso vai passar a existir e o consumidor vai poder, até mesmo, acompanhar as suas demandas no site da agência”, disse. Segundo Longo, somente no ano passado, a ANS recebeu mais de 100.000 reclamações. Cerca de 70.000 delas foram relacionadas à cobertura.
(Com Estadão Conteúdo)

Estratégia leva Dilma para mais perto da Igreja

 Por Rafael Moraes Moura, estadao.com.br

BRASÍLIA - Ao visitar o Vaticano para acompanhar a cerimônia de criação de cardeais, a presidente Dilma Rousseff...




BRASÍLIA - Ao visitar o Vaticano para acompanhar a cerimônia de criação de cardeais, a presidente Dilma Rousseff buscou tanto prestigiar o arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, quanto aumentar a interlocução do Palácio do Planalto com a Igreja Católica em ano eleitoral.
Trata-se de um movimento estratégico para levar a um novo nível a relação entre Dilma e a Igreja, pontuada por turbulências desde a campanha eleitoral de 2010. É também oportunidade para surfar na popularidade do papa Francisco.
Dilma não é católica praticante, mas diz ter na Igreja Católica a "sua referência de fé". Em seu gabinete, há três imagens de Nossa Senhora Aparecida.
Para o Planalto, a realização da Jornada Mundial da Juventude, em julho do ano passado, não poderia ter ocorrido em melhor hora. A popularidade de Dilma havia sofrido forte queda - além da vaia na Copa das Confederações. O País vivia ainda a ressaca dos protestos de junho e se acentuavam o pessimismo na economia. Com o papa Francisco, o noticiário desviou de foco, passando a transmitir mensagens de fé, paz e esperança.
"Houve um trabalho muito próximo entre o governo e a Arquidiocese do Rio para preparar a Jornada Mundial da Juventude", disse o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Leonardo Steiner, para quem, após o evento, houve uma aproximação entre Dilma e o papa. Na campanha eleitoral de 2010, Dilma foi criticada por declarações sobre o aborto e, pressionada, assinou carta em que dizia ser pessoalmente contra a prática.
Segundo fontes diplomáticas e religiosas, não é comum a viagem de presidentes brasileiros para acompanhar o Consistório. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi ao Vaticano duas vezes, mas não acompanhou a cerimônia em que o arcebispo de Aparecida, d. Raymundo Damasceno Assis, foi oficializado cardeal, em 2010, nem em 2007, quando foi a vez do arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer.

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ENTREVISTA - DAVID LAPOUJADE




* * * 
Por que o livro só traz um texto inédito, “A Ilha Deserta”?
David Lapoujade: Todo o trabalho de Deleuze se ordenava em torno da composição de seus livros. Frequentemente, os artigos existiam apenas numa estreita relação com os livros que ele estava fazendo. Isso se pode verificar mais e mais, à medida que a obra avança. Ora, como ele dá tudo que pode a cada um de seus livros, ele não dispõe de nenhuma reserva que poderia servir em outro lugar. Quaisquer que sejam as razões, os inéditos supõem uma lógica de poupança bem estranha a Deleuze.


Lapoujade: Pouco e de maneira sub-reptícia. Nós a encontramos, sob a forma de alusão, em “O Método de Dramatização”, em “Diferença e Repetição”. Mais tarde, Deleuze evocará os arquipélagos ou os atóis, mas sob um outro ponto de vista.
Muito próximo da prosa poética, “Causas e Razões das Ilhas Desertas” é um texto muito bonito, mas misterioso também. Como lê-lo dentro da filosofia de Deleuze?
Lapoujade: Esse texto foi uma encomenda para o número especial de uma revista de viagens.... Me parece que, em “A Ilha Deserta”, Deleuze esboça já uma variação sobre o tema da diferença que deveria acompanhá-lo até “Diferença e Repetição”. A questão que coloca a ilha deserta poderia ser a seguinte: em que uma ilha deserta constitui uma diferença nela mesma?
Por que Robinson é um personagem relativamente frequente no pensamento deleuziano?
Lapoujade: Uma coisa é certa: não é por fascinação. Deleuze o diz claramente nesse artigo, quando ele afirma que todo leitor sadio sonha ver Sexta-Feira comer Robinson. Se nós o encontramos mais tarde, é sob a forma do Robinson perverso descrito por Michel Tournier em “Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico”. Deleuze vê aí elementos para uma concepção filosófica do outrem. No fim das contas, Robinson não interessa a Deleuze senão pervertido ou devorado.
Descobre-se nos textos reunidos a maior parte dos temas deleuzianos desenvolvidos mais tarde, ou ao mesmo tempo, nos livros conhecidos. Mas será que podemos dizer que há aí também temas que não tiveram posteridade no seu trabalho?
Lapoujade: Eu creio com efeito que o encontro com Guattari, que é frequentemente subestimado, alterou bastante as coisas no trabalho de Deleuze. Até “Diferença e Repetição” e “Lógica do Sentido”, lançados em 1969, Deleuze tentava construir uma filosofia próxima de um certo estruturalismo. A noção de estrutura estava no centro de seus dois livros, mesmo se ele fazia dela um uso um pouco distante daquele de Lacan ou Lévi-Strauss. Havia paralelamente todo um fundo que se avolumava, um fundo intensivo, que não vai explodir realmente senão com o encontro com Guattari. Então, Deleuze renunciará a suas construções estruturais para repensar tudo em termos de fluxo, de desejo, de agenciamento. Assim, vão desaparecer a dupla profundidade/superfície deste período, mas também a noção de simulacro (talvez por causa do que ela se tornou com Baudrillard) ou ainda conceitos saídos da leitura de Lacan.
Um célebre texto sobre o estruturalismo (“A quoi reconnait-on le structuralisme?”) está republicado em “A Ilha Deserta”. O que de fato o estruturalismo trouxe à filosofia de Deleuze?

Lapoujade: É uma questão muito difícil, à qual não se pode responder em poucas palavras. Muito, muito esquematicamente, se poderia dizer que a noção de estrutura é aquilo que permite a Deleuze -até 1970- unificar, totalizar o conjunto dos campos que percorre sua filosofia: biologia, arte, matemáticas, linguística, psicanálise etc. Mas, eu repito, seu estruturalismo não se decalca do de Lévi-Strauss, de Lacan ou da linguística. É um estruturalismo dissidente.
Há dois textos muito surpreendentes, ao meu ver, em “A Ilha Deserta”, sobre Sartre e Rousseau, duas figuras que não são muito presentes na filosofia deleuzeana, mesmo se ele deu um curso sobre Rousseau. Por que esses filósofos aparecem tão pouco em Deleuze?
Lapoujade: Você tem razão de dizer que Sartre e Rousseau são pouco presentes em Deleuze. Sem dúvida, Deleuze não era atraído senão pela perversidade de Rousseau, toda a profunda crueldade que anima subterraneamente o discurso virtuoso da “Nova Heloísa”. O resto, a saber, o edifício de seu pensamento político fundado sobre um contrato republicano, deixava Deleuze indiferente. Mas o breve artigo de Deleuze sobre Rousseau deveria ser prolongado. Seria preciso mostrar como Rousseau perverte sua obra política através de sua obra literária, extrai a crueldade do contrato... Para Sartre, o problema é um pouco diferente. Deleuze admirava muito Sartre, porque ele liberava a filosofia de seu fechamento acadêmico. Mesmo a fenomenologia se tornava um pouco viva nos seus escritos. Seus textos sobre a literatura, sobre a atualidade, seus engajamentos políticos criavam uma “corrente de ar”. Enfim, a filosofia saía da Sorbonne...
Até o encontro com Guattari, Deleuze é reticente em relação a Marx e ao marxismo. Ele não se interessava por isso? O que o marxismo de Guattari, ex-trotsquista, trouxe para Deleuze? Ao mesmo tempo, será que a dialética marxista não permanece um problema para a filosofia da diferença?
Lapoujade: Pode-se de imediato lembrar longas passagens sobre Marx em “Diferença e Repetição” que não testemunham nenhuma reticência por Marx, ao contrário. Talvez, nessa época, Deleuze estima que é Althusser que vai mais longe na leitura estruturalista de Marx. Mas é verdade que a questão política embaraça Deleuze, como ele diz numa entrevista de 1969 a Jeannette Colombel. Essa entrevista é instrutiva: sente-se que Deleuze procura pensar a questão política em relação com as intensidades, os afetos, mas que ele não vê ainda como proceder. A resposta não se encontra em Marx. Daí, talvez, sua fraca importância naquele momento. Você tem razão, é Guattari que muda tudo, na medida em que ele concebe o desejo como imediatamente social. Ora, é o caráter social do desejo que permite repensar todo o campo do político. Para isso, eles não têm necessidade de Marx. A importância de Marx, a seus olhos, se encontra além: ela consiste essencialmente na sua análise do capitalismo.
A vulgarização do pensamento deleuziano caminha a passos largos. Nas revistas de arte e nos sites de vanguarda da internet, os críticos falam de “forças”, “velocidades”, “pensamento nômade” etc. Em revanche, não se vê a política de Deleuze-Guattari se impor junto à nova esquerda antimundialista, que é muito mais inclinada às idéias de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, um pensamento muito dialético, como se sabe. Como explicar esta fascinação exercida por Deleuze nos criadores e artistas e que não encontra correspondência nos ativistas políticos?
Lapoujade: Você compreende que não posso responder por eles. Seria interessante perguntar: por que Debord? O que choca, contudo, é que o novo tipo de luta dos movimentos antimundialização -porque é muito novo- não está afastado do que Deleuze e Guattari pensaram sob o termo de “rizoma”, um sistema de rede acentradas, fora de todo sistema de representação, funcionando de modo ao mesmo tempo local e global. De outro lado, o caráter fundamentalmente pragmático das análises e das ações dos “antimundialistas” parece muito próximo também daquilo que Deleuze e Guattari indicam, sobretudo quando eles procuram as “linhas de fuga” de um sistema dado. Estou espantado com aquilo que você me diz de Debord e de sua influência. Seu pensamento é antes de tudo o de um paranóico: o sistema já venceu sempre o que se opõe a ele, já recuperou e integrou sempre aquilo que o contesta. De onde a idéia de que a luta deve ser levada sobre um fundo de derrota primordial. Luta-se, claro, mas com a idéia de que, de todo modo, o combate estará perdido antes, daí uma ironia que se queria “subversiva” com muito de melancolia. Mas quem não vê que aquilo com que sonha todo o sistema é triunfar por antecipação sobre toda luta, toda oposição? Que ele sonha se tornar mais real na vida das pessoas do que o próprio poder de resistência ou os próprios desejos delas? Nós não vivemos numa sociedade do espetáculo, mas numa sociedade real, onde as ações são reais, nas almas e nos corpos. Desse ponto de vista, o pragmatismo dos antimundialistas me parece ir num sentido bem oposto às teses de Debord.
Se fosse possível escolher a questão principal, o desafio, que Deleuze coloca a nossa época, qual seria?
Lapoujade: Não é preciso muito trabalho hoje, com o fascismo que nos impõe a América de Bush, para responder a essa questão. Talvez o mais urgente em filosofia seja tentar fazer da América um objeto filosófico, criar uma espécie de objeto filosófico monstruoso que nos daria pontos de apoio para escapar dele, para saber como resistir e fugir dos modos de vida que nos são impostos. Mas há muitas outras questões possíveis levantadas por Deleuze e Guattari...
Como será composto o segundo volume de textos, “Deux Régimes de Fous” (Dois Regimes de Loucos)?
Lapoujade: Se tudo correr bem, o livro sairá em janeiro de 2003. Ele será tão volumoso quanto o primeiro, conterá alguns inéditos e tocará em questões sensíveis, como os textos sobre Yasser Arafat, a questão do terrorismo através de textos sobre o grupo Baader-Meinhof ou a condenação de Toni Negri durante os anos de chumbo na Itália. Ele deverá também manifestar preocupações mais extensas. Haverá textos sobre música (Boulez), cinema, pintura (Bacon) etc.


Por Alcino Leite Neto

Michel Foucault / Gilles Deleuze: é sempre uma multidão







OS INTELECTUAIS E O PODER
Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze


Michel Foucault: Um maoísta[2] disse-me, dia desses: "Entendo bem por que Sartre está conosco, por que faz política e em que sentido faz política. Respeito você e, afinal, compreendo um pouco. Você sempre falou do problema da prisão. Mas Deleuze... Desse, não entendo nada." Essa ideia surpreendeu-me muito, porque [o que você diz] parece-me sempre muito claro.

Gilles Deleuze: A explicação é, possivelmente, que vivemos hoje de outro modo as relações entre teoria e prática. Antes, se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma consequência, e também, ao contrário, como se a prática devesse inspirar a teoria; como se a própria prática fosse criadora de uma forma futura de teoria. Mas sempre se concebiam as relações entre teoria e prática sob a forma de um processo de totalização, da prática para a teoria ou da teoria para a prática.

Para nós, contudo, a questão põe-se de outro modo. As relações entre teoria e prática são muito mais parciais e fragmentadas. Por um lado, porque a teoria sempre é local, relativa a um campo pequeno; e pode ser aplicada em outro domínio, mais ou menos distante. A relação de aplicação nunca é relação de semelhança.

Por outro lado, a partir do momento em que a teoria se incrusta em seu próprio domínio, ela passa a enfrentar obstáculos, barreiras, choques, que obrigam que a teoria seja proposta mediante outro tipo de discurso. Esse outro tipo de discurso é que, eventualmente, faz a teoria passar para um domínio diferente.

A prática é um conjunto de conexões entre um ponto teórico e outro. E a teoria é um movimento que abarca duas ou mais práticas.

Nenhuma teoria pode desenvolver-se, se não encontrar uma espécie de muro, de resistência; e precisa-se da prática para perfurar esse muro.

Você, por exemplo: você começou por analisar teoricamente um modo de emprisionamento – o manicômio, no século 19, na sociedade capitalista. Depois, desembocou na necessidade de que as pessoas aprisionadas falassem por conta própria, que operassem uma conexão (ou, ao contrário, você é que estava em conexão com elas), e essas pessoas estão nas prisões. Quando você organizou o grupo de estudo sobre as prisões, foi sobre essa base: instaurar condições pelas quais os prisioneiros pudessem, eles mesmos, falar.

Seria completamente falso dizer, como parecem dizer os maoístas, que você estaria passando à prática, pela aplicação de suas teorias. No seu trabalho, não havia nem aplicação, nem projeto de reforma, nem investigação no sentido tradicional. Havia algo muito diferente: havia um sistema de conexão num conjunto, numa multiplicidade de peças e pedaços que eram, ao mesmo tempo, teóricos e práticos.

Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Os que agem e os que lutam já não são representados nem por partidos nem por sindicatos que se auto atribuam o direito de ser a consciência dos que lutam. Quem fala e quem luta? É sempre uma multidão, inclusive dentro da pessoa que luta e da pessoa que fala. Todos somos pequenos grupos. A representação já não existe. Só há a ação, ação de teoria, ação de prática, em relações de conexão ou de redes.


Michel Foucault: Parece-me que, tradicionalmente, o intelectual politiza-se a partir de duas coisas: (i) de sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de produção capitalista, na ideologia que a sociedade capitalista produz ou impõe (ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado, ser "maldito", acusado de subversivo, de imoral etc.); e (ii) o próprio discurso do intelectual, que revela alguma verdade, que descobre relações políticas onde, antes, nada se via.

Essas duas formas de politização não eram estranhas uma à outra, mas também não coincidiam necessariamente. Havia o tipo "intelectual maldito" e o "socialista". Essas duas politizações muito facilmente se confundiram em alguns momentos em que o poder reagiu violentamente – depois de [18]48, depois da Comuna, depois de 1940.

O intelectual foi rechaçado, perseguido, no preciso instante em que "as coisas" estariam aparecendo "de verdade"; no momento em que não seria preciso que alguém dissesse que o rei estava nu. O intelectual, nesses momentos, estaria dizendo a verdade a gente que ainda não estaria vendo a verdade; e o intelectual falaria em nome dos que não podiam dizer a verdade: seriam a consciência e a eloquência.

Ora, depois da recente avalanche os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles para saber; que as massas sabem claramente, precisamente, muito melhor que os intelectuais. E que sabem afirmar extremamente bem o que sabem. Mas há um sistema de poder que proíbe, que impõe obstáculos, que invalida esse saber e esse discurso. É poder que não está só nas instâncias superiores da censura, mas que também se funde mais profundamente, mas sutilmente, em toda a malha social. Os próprios intelectuais são parte desse sistema de poder. A ideia de que os intelectuais seriam os agentes "da consciência" e do discurso está incluída nesse sistema de poder.

O papel do intelectual não é situar-se "um pouco à frente" ou "um pouco à margem", para daí dizer a verdade de todos, verdade a qual, sem os intelectuais, permaneceria muda.

Trata-se, sobretudo, de lutar contra as formas de poder em todos os pontos nos quais o poder é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do "saber", da "verdade", da "consciência" e do "discurso".

Nesse sentido, a teoria não expressa, não traduz nem é aplicação de uma prática: a teoria é uma prática. Mas é prática local e regional, como você diz, não é prática totalizadora. Luta-se contra o poder, luta-se para fazê-lo aparecer e golpeá-lo nos pontos em que o poder é mais invisível e insidioso.

Não se luta por alguma "tomada de consciência" – já faz muito tempo que as massas tomaram consciência, como saber; e também já faz muito tempo que a burguesia tomou, ocupou, a consciência, como sujeito. Luta-se, isso sim, para nos infiltrarmos no poder e tomar o poder, ao lado de todos os que lutam também por isso. Ao lado. Não afastados, a uma distância da qual os intelectuais iluminariam as massas. Cada sistema regional dessa luta é "uma teoria".

Gilles Deleuze:  É. Cada teoria é precisamente uma caixa de ferramentas. Não há qualquer relação entre a teoria e seu significante. A teoria tem de servir, de funcionar. Tem de haver pessoas que se sirvam da teoria, a começar pelo próprio teórico, que deixa de ser teórico, e que, se não deixar de ser teórico, não vale nada (ou o momento ainda não chegou). Mas não se volta para teorias passadas: fazem-se outras. Há outras teorias por fazer.

Curioso é que o autor que mais passa por puro intelectual tenha sido quem disse isso com mais clareza: Proust. Tratem meu livro como um par de lentes dirigidas para fora; e, bem, se não servirem, troque as lentes, encontrem vocês mesmos, cada um, suas lentes próprias, o próprio aparelho, que será necessariamente aparelho de combate.

A teoria não pode ser totalizada; ela multiplica e multiplica-se. Quem, pela própria natureza, opera totalizações é o poder. Você diz exatamente: a teoria está, por natureza, contra o poder. Desde que uma teoria incrusta-se num ou noutro ponto, passa a enfrentar o risco de não ter qualquer consequência prática possível, de não provocar explosão alguma, sequer em algum outro ponto.

Por isso a noção de reforma tem, de estúpida, o que tem de hipócrita. Ou a reforma é feita por gente que se apresenta como representativa, gente que faz profissão do tomar a palavra de outros, do falar em nome de outros; nesse caso, a reforma não passa de remodelagem do poder, distribuição do poder, que sempre se faz acompanhar de repressão violenta; ou é reforma reclamada, exigida, por gente interessada em ser reformada e, nesse caso, a reforma deixa de ser reforma, é ação revolucionária que, do fundo de seu caráter parcial, está determinada a alterar a totalidade do poder e da hierarquia do poder.

É bem claro no caso das prisões: a mais mínima, a mais modesta, a mais minúscula reivindicação dos prisioneiros já basta para esvaziar qualquer pseudo reforma. Se as crianças numa escola maternal conseguem que se ouçam suas reivindicações, ou, pelo menos, que suas perguntas sejam consideradas, já basta para que se produza uma explosão no conjunto do sistema de ensino. De fato, o sistema no qual vivemos não pode suportar nenhuma pressão. Por isso é radicalmente frágil em todos os pontos. E por isso também, acumulou tal força de repressão global.

Em minha opinião, você foi o primeiro a nos ensinar algo de fundamental, tanto nos livros como num território prático: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer: a representação é cômica, é de rir. Já se disse que a representação estaria acabada. Mas não se extraíram todas as consequências dessa reconversão 'teórica' – quero dizer: que a teoria exige que os envolvidos falem, doravante, pode-se dizer, praticamente por conta deles mesmos.


Michel Foucault: E quando os prisioneiros puseram-se a falar, viu-se que tinham uma teoria da prisão, da pena, da justiça. Essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso mantido pelos prisoneiros e por todos que se considera como delinquentes, é, na realidade, o que importa, não alguma teoria sobre a delinquência. O problema da prisão é problema local e marginal; por ano, não passam mais de 100 mil pessoas pelas prisões; na França, atualmente [1972], há talvez 300 ou 400 mil pessoas que passaram pela prisão. Mesmo assim, esse problema marginal sacode todo mundo. Surpreendeu-me muito ver que tanta gente não prisioneira se interessava pelo problema das prisões. Surpreendeu-me que tanta gente que não estava predestinada a ouvir esse discurso dos prisioneiros o tenha afinal ouvido. Como explicar isso?

Talvez, porque, de modo geral, o sistema penal é a forma pela qual o poder se mostra como poder, de forma mais claramente manifesta? Meter alguém numa cela, fechá-lo, privá-lo de comida, de calefação, impedir alguém de sair, de fazer amor etc., essa é a mais delirante manifestação de poder que se poderia imaginar.

Outro dia, conversei com uma mulher que esteve presa, e ela dizia: "E pensar que me meteram na cadeia, a pão e água, eu, que tenho 40 anos..." O que me chama a atenção nessa história não é só a puerilidade do exercício do poder, mas também o cinismo com que o poder exerce-se como poder. Não há forma mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Por alguém de castigo, a pão e água, é lição que se ensina a criança. A prisão é o único lugar em que o poder manifesta-se a nu, em suas dimensões mais excessivas, e nde se justifica como poder moral. "Tenho razão para castigar, porque todos sabem que não se deve roubar, matar...".

O mais fascinante nas prisões é que ali, só ali, o poder não se esconde, não se mascara: mostra-se plenamente como tirania imposta, até nos mais ínfimos detalhes, poder cínico e, ao mesmo tempo, puro, completamente 'justificado', já que pode ser completamente formulado no interior de uma moral que mascara o próprio exercício. A tirania selvagem do poder aparece ali como serena dominação do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem.

Gilles Deleuze: E o inverso também é verdade. Não só os prisioneiros são tratados como crianças: as crianças também são tratadas como prisioneiros. As crianças padecem uma infantilidade que não é a deles. Nesse sentido, pode-se dizer que as escolas são prisões, que as fábricas são prisões. Basta ver a entrada na [fábrica] Renault. Ou em outros locais: três pausas por dia, para fazer xixi.

Você encontrou um texto de Jeremias Bentham no século 18 que propõe, precisamente, uma reforma das prisões. Em nome dessa reforma, estabelece um sistema circular pelo qual, ao mesmo tempo, a prisão renovada passaria a servir de modelo, para que, sem qualquer dificuldade ou salto, se passe, da prisão para a escola e para a fábrica, e da fábrica para a prisão. Aí está a essência do reformismo, da representação reformada.

E é diferente, quando as pessoas não contrapõem uma representatividade 'nova' e falsa, à falsa representatividade velha do poder. Por exemplo, lembro que você disse que não há justiça popular contra a justiça, que a coisa acontece noutro nível.


Michel Foucault: Penso que, se se considera o ódio que o povo tem da justiça, de juízes, de tribunais, das prisões, não é aconselhável considerar só a ideia de outra justiça, melhor, mais justa. Entendo que se deva, em primeiro lugar e sobretudo, perceber o ponto singular no qual o poder exerce-se às expensas do povo. A luta antijudicial é luta contra o poder. Não me parece que seja luta contra as injustiças, contra as injustiças da justiça, e por um melhor funcionamento da instituição judicial. Mesmo assim, é surpreendente que sempre que houve motins, revoltas e sedições, o alvo tenha sido o aparelho judicial, ao mesmo tempo e pelas mesmas causas que o aparelho de fiscalização, o exército e as demais formas de poder.

Minha hipótese, mas é só uma hipótese, é que os tribunais populares – por exemplo, no momento da Revolução – sempre foram um modo, usado pela pequena burguesia aliada às massas, para esvaziar, para enfraquecer a luta contra a justiça. Para esvaziar a luta contra a justiça e reforçar a justiça, propuseram esse tipo de tribunal dito revolucionário, onde se faria justiça justa, com juiz justo, que ditaria sentenças justas. Assim se salvam os tribunais, os juízes, a justiça e as sentenças.

Mas a própria forma de tribunal para fazer justiça, que é parte de uma ideologia burguesa de justiça (burguesa), essa, escapa ilesa.

Gilles Deleuze:  Se se considera a situação atual, o poder tem, necessariamente, uma visão total, global. Quero dizer que todas as atuais formas de representação, que são muitas, podem, do ponto de vista do poder, serem facilmente somadas numa só, podem ser facilmente totalizadas: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão na escola e no ensino, a repressão contra os jovens em geral. Não se deve só procurar ver a unidade de todas essas formas só na reação ao maio-68; deve-se procurar vê-la, mais, numa preparação e numa organização concertadas de nosso futuro próximo.

O capitalismo francês precisa muito de uma "reserva de desemprego" e abandona a máscara liberal e paternalista do pleno emprego. Desse ponto de vista, eles encontram sua unidade: limitam a imigração, depois que ouviram dizer que os emigrados estavam sendo encarregados dos trabalhos mais duros e ingratos; limitam a repressão nas fábricas, no instante em que se tratou de devolver ao francês "o gosto" por um trabalho cada vez mais duro. A luta contra os jovens e a repressão na escola e no ensino, já que a repressão policial é tanto mais viva quanto menos o mercado de trabalho precise de jovens. Todas as categorias profissionais virão a ser convidadas para exercer funções cada vez mais claras de polícia: os professores, os psiquiatras, o pessoal da educação em geral, etc.

Vê-se aqui algo que você anuncia há tempo e que se supunha que não aconteceria: o reforço de todas as estruturas do encarceramento, da reclusão. Então, frente a essa política global do poder, surgem respostas locais, respostas corta-fogo, defesas ativas e, às vezes, preventivas.

Não nos interessa totalizar o que o poder já totaliza, e que só poderemos totalizar se restaurarmos formas representativas de centralismo e de hierarquia.

O que se pode fazer, isso sim, é instaurar conexões laterais, horizontais, um sistema de redes, de base popular, justamente o que é mais difícil. Seja como for, a realidade, para nós, absolutamente não passa pela política no sentido tradicional de competição e de distribuição de poder, das instâncias chamadas representativas, para o Partido Comunista ou a Confederação Geral do Trabalho.

"Realidade" é o que efetivamente se vê hoje na fábrica, na escola, no quartel, na prisão, numa delegacia. Por isso, a ação implica um tipo de informação que é, por natureza, muito diferente da informação que nos chega pelos jornais (ou pela Agência de Notícias do jornal Liberation).


Michel Foucault: Essa dificuldade, a dificuldade que temos para encontrar as formas adequadas de luta, não é resultado de nós ainda ignorarmos, até hoje, o que seja o poder? Foi preciso chegar ao século 19 para aprender que o poder era a exploração, mas ainda não se sabe e talvez jamais consigamos saber o que é o poder. Marx e Freud talvez não bastem para nos ajudar a conhecer essa coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, e que se chama "poder". A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado não esgotam, é claro, o campo do exercício e do funcionamento do poder.

A grande incógnita atualmente é: "quem exerce o poder, e de que lugar o exerce?"

Já se conhece na prática quem explora, para onde vai o lucro, por quais mãos passa e onde é investido. Mas sobre o poder... Sabe-se que o poder não pertence aos governantes. A noção de "classe dirigente" não é clara nem foi satisfatoriamente elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado" etc. – todas essas noções têm de ser analisadas. E seria preciso sabem bem até onde se exerce o poder, por quais conexões e até quais mínimas instâncias, quase sempre, instâncias de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de sujeições. Em todos os pontos onde haja poder, o poder é exercido. Dito com mais rigor, ninguém é titular do poder; mas, mesmo assim, o poder é sempre exercido numa determinada direção, com uns de um lado e os outros de outro. Nunca se sabe quem exatamente tem o poder; mas sempre se sabe quem não tem o poder.

Se a leitura de seus escritos (desde Nietzsche e a filosofia [1972][5]) até o que pressinto de Anti-Édipo. Capitalismo y esquizofrenia[6]) foi tão essencial para mim, é porque que eles fazem muito mais que apenas propor o problema do poder, afinal, sob o velho tema do sentido, do significado, do significante etc.; a desigualdade dos poderes, de suas lutas.

Cada luta desenrola-se em torno de um específico centro de poder (de um desses inúmeros pequenos focos, desde o chefete, o vigilante de casas populares, o diretor de uma prisão, um juiz, um diretor de sindicato, até o redator-chefe de um veículo da imprensa-empresa).

E, se indicar os núcleos, apontá-los, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, isso não acontece porque as pessoas não tenham consciência, mas, sim, porque falar desse tema, forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez o quê, indicar um alvo, já é uma primeira inversão do poder, já é um primeiro passo na direção e em função de outras lutas contra o poder.

Se discursos dos encarcerados ou dos médicos que trabalham nas prisões são lutas, é porque esses discursos confiscam, pelo menos por um momento, o poder de falar das prisões – um poder que, hoje, é exclusivamente ocupado pela administração das prisões e por seus compadres 'reformadores'.

O discurso de luta não faz oposição ao inconsciente: ele só se opõe aosecreto. Por isso, dá a impressão de ser menos importante. Mas e se, por isso, for muito mais importante?

Há toda uma série de equívocos sobre o "oculto", o "reprimido", o "não dito", e esses equívocos permitem que se faça uma "psicanálise" de baixo preço do que deve(ria) ser objeto de luta. Provavelmente, é mais fácil 'vazar' o secreto, o sigiloso, do que deixar à vista o inconsciente.

Até há pouco tempo, os dois temas que mais apareciam eram: "a escritura é o reprimido" e "a escritura é, de pleno direito, subversiva". E os dois, me parece, mostram algumas operações que se deve denunciar com severidade.

Gilles Deleuze:  Quanto ao problema que você coloca – vê-se bem quem explora, quem se aproveita, quem governa, mas o poder é algo ainda mais difuso – ofereço a seguinte hipótese: o marxismo também, e sobretudo, determinou o problema em termos de interesse (o poder está em mãos de uma classe dominante definida por seus interesses). Mas, de repente, se tropeça numa pergunta: Como é possível que gente sem qualquer interesse preciso de assumir o poder, siga o poder, case-se tão completamente com o poder e passe a reclamar para si parte do ganho?

É possível que, em termos de investimentos, sejam econômicos sejam inconscientes, o interesse não tenha a última palavra... Há investimentos de desejo que explicam a necessidade de desejar, não contra o próprio interesse, já que o interesse sempre continua e aparece onde o desejo o ponha, mas desejar de forma mais profunda e difusa do que o simples interesse. É preciso preparar-se para ouvir o grito de Reich: não, não, as massas não foram enganadas; num determinado momento, as massas desejaram o fascismo!

Há investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem, e fazem o poder estar tanto no plano policial como no plano do primeiro-ministro; e apagam qualquer diferença de natureza entre o poder de um simples policial e o poder de um primeiro-ministro. A natureza desses investimentos de desejo sobre um corpo social explica por que os partidos e os sindicatos – que, em nome dos interesses de toda a classe, teriam ou deveriam fazer investimentos sempre revolucionários – fazem muitas vezes, no plano do desejo, investimentos reformistas ou perfeitamente reacionários.

Michel Foucault: Como você diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que se pensa. Resulta que os que exercem o podem não precisam ter, necessariamente, qualquer interesse em exercê-lo; os que têm interesse em exercer o poder não o exercem; e o desejo de poder joga, entre o poder e o interesse, um jogo muito especial.

Acontece que as massas, no momento do fascismo, desejam que alguns exerçam o poder; alguns que, contudo, não se confundem com as próprias massas, porque o poder será exercido sobre as massas e à custa das massas, até a morte, o sacrifício, o massacre. Mas as massas, mesmo assim, desejam aquele poder, querem que aquele poder seja exercido. Ainda conhecemos mal esse jogo de desejo, poder e interesses. E melhor conhecimento desse jogo teria sido muito útil para saber o que é a exploração. O desejo foi e é assunto muito amplo. É possível que as lutas que se travam hoje, e, além delas, também essas teorias locais, regionais, descontínuas que se vão elaborando nas lutas e ganham corpo com as próprias lutas, é possível que tudo isso seja o começo de um descobrimento de como exerce-se o poder.

Gilles Deleuze: Muito bem. Eu volto à questão: o movimento revolucionário atual tem muitos focos, e não por debilidade ou insuficiência do movimento, já que as totalizações são projetos e realizações do poder e da reação. Por exemplo, o Vietnã é uma formidável resposta local.

Mas como conceber as redes, as conexões transversais entre esses vários pontos ativos descontínuos, de um país a outro e no interior de um mesmo país?

Michel Foucault: Acho que essa descontinuidade geográfica de que você fala pode significar o seguinte: desde o momento em que se lute contra a exploração, é o proletariado quem, não só conduz a luta, mas quem também define os alvos, os métodos, os lugares e os instrumentos de luta. Aliar-se ao proletariado é unir-se nas posições dos proletários, sua ideologia, retomar os motivos de sua luta. É fundir-se.

Mas se se luta contra o poder, todos aqueles sobre os quais o poder é exercido como abuso, todos os que veem o poder como intolerável, podem comprometer-se com a luta no ponto em que estão, no local onde vivam, a partir de sua atividade (ou inação) específica. Comprometendo-se nessa luta que é deles, cujo alvo conhecem perfeitamente, e luta da qual eles podem definir o método, então, entram no processo revolucionário.

Como aliados dos proletários, sim, pois, se o poder exerce-se como tal, exerce-se, com certeza, para manter a exploração capitalista. Servem realmente à causa da revolução proletária, lutando, precisamente, nos pontos nos quais a opressão abate-se sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os enfermeiros nos hospitais, os homossexuais abriram hoje uma luta específica contra a forma privada de poder, de imposição, de controle que se exerce sobre eles.

Todas essas lutas são parte, atualmente, do movimento revolucionário, nos casos em que sejam radicais, sem concessões nem reformismos, sem tentativas para modelar o poder de sempre, para conseguir, no máximo, uma troca de titular.

E esses movimentos estão unidos ao movimento revolucionário do proletariado, na medida em que o proletariado haverá de combater contra todos os controles e imposições que reproduzem, em todos os cantos e pontos, sempre o mesmo poder.

Isso significa que a generalização e a generalidade da luta não se fazem mediante alguma totalização teórica, sob a forma de alguma "verdade". Quem generaliza a luta é o próprio sistema de poder, todas as formas de exercício e de aplicação do poder.

Gilles Deleuze:  Não é possível tocar num ponto, seja qual for, sem que, a partir dali, já estejamos enfrentando todo esse conjunto difuso de poder que se quer tentar reverter, a partir das mais mínimas reivindicações. Por isso, todas e quaisquer defesas ou ataques revolucionários parciais, unem-se e integram-se na luta operária.
***






[1] Tradução Roberto Machado publicado em Microfísica do Poder
(organização, introdução e revisão técnica de R. Machado)
Rio de Janeiro: Graal, 1979

[2] É uma espécie de intelectual francês que, em Paris, nos anos 60s, era chamado de "maoísta". Mao jamais teve coisa alguma a ver com aqueles caras. A discussão chegou ao Brasil ainda mais contaminada por outros zilhões de 'leituras' intermediárias nem sempre explicitadas com clareza e com as quais, tampouco, Mao teve, algum dia, alguma coisa a ver. Em 1967, Goddard fez um filme sobre aqueles 'maoístas' à francesa [na França: La Chinoise; no Brasil: "A Chinesa"; em Portugal: "O Maoísta"].
           O maoísmo, fantasiado dessa vez de chinesa sexy-misteriosa-fetiche de intelectuais ocidentais e vítima de pressuposta perseguição pressuposta desumana, por defender pressupostos direitos pressupostos humanos (como, hoje, o tal "dissidente chinês cego") também aparece, também falsificado, em Les invasions barbares (dir. Denys Arcand, 2003, "As Invasões Bárbaras").
           Mao, como se sabe, sempre ensinou que "só a luta ensina". Essa lição foi interpretada em vários círculos como 'pôr a prática à frente da teoria' ou, como Deleuze diz aí: "passar da prática à teoria". Nada mais distante da cabeça de Mao, que essa leitura. Mao sempre disse que só a luta ensina a lutar. Jamais lhe passou pela cabeça que só alguma luta ensinaria alguma teoria, mesmo que fosse teoria da luta.
           No máximo, admite-se que tenha dito que para conhecer uma maçã é preciso mordê-la. Mas conhecer não é, de modo algum, construir teoria completa e consistente, nem, mesmo, meia teoria, sobre (i) o conhecer; (ii) a maçã; ou (iii) o morder, quer dizer, a prática [NTs].
[3] Ver DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio C. Piquet e RobertoMachado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987 [NTs].
[4] PROUST, Marcel, A busca do tempo perdido, vol. 7: O tempo recuperado. Pode ser lido, em retradução de Fernando Py, emhttp://pt.scribd.com/esmand/d/46435967-8688743-O-Tempo-Redescorberto-PROUST. Mas a melhor tradução que jamais se fez em língua portuguesa, desse 7º volume da Recherche, é a de Lúcia Miguel Pereira, para a Ed. Livraria do Globo, Porto Alegre: PROUST, Marcel. Em busca do  tempo  perdido.  Trad. de Mário Quintana, Lourdes de  Souza Alencar, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo: Globo, 1956-1958. 7v. [NTs]. 
[5] DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia, Rio de Janeiro: Ed. Rio, Coleção Semeion, 1976.


[6] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix.  O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34, Trad. Luiz B. L. Orlandi, 2010, 1ª ed.

Mais além dos direitos do homem



Por Giorgio Agamben

Editor do blog A navalha de Dalí

1. Em 1943, Hannah Arendt publicava em uma pequena revista hebraica em língua inglesa, “The Menorah Journal”, um artigo intitulado We refugees, “Nós, refugiados”. Ao final desse breve, mas significativo, escrito, depois de ter polemicamente esboçado o retrato de Mr. Cohn, o hebreu assimilado que, depois de ter sido 150% alemão, 150% vienense, 150% francês, ao cabo, deve dar-se conta, amargamente, de que on ne parvient pas deux fois, essa invertida condição de refugiado e de apátrida que se encontrava vivendo, para propô-la como paradigma de uma nova consciência histórica. O refugiado que perdeu todo direito e cessa, porém, de querer-se assimilar a qualquer preço a uma nova identidade nacional para contemplar lucidamente a sua condição, recebe, em troca de uma segura impopularidade, uma vantagem inestimável: “a história não é mais, para ele, um livro fechado, e a política deixa de ser privilégio dos Gentios. Ele sabe que o banimento do povo hebraico na Europa foi seguida imediatamente do banimento da maior parte dos povos europeus. Os refugiados expulsos de país em país representam a vanguarda de seus povos”.

Convém refletir no sentido dessa análise que, hoje, cinquenta anos distante, não perdera nada de sua atualidade. Não apenas o problema se apresenta na Europa e fora dela com igual urgência, mas, no declínio do Estado-Nação, atualmente impossível de deter, e na corrosão geral das categorias jurídico-políticas tradicionais, o refugiado é, talvez, a única figura do povo pensável em nosso tempo e, ao menos até nos aproximarmos da complementação do processo de dissolução do Estado-Nação e de sua soberania, a única categoria na qual, hoje, consentimos vislumbrar as formas e limites de uma comunidade política que vem. É possível, assim, que se quisermos estar à altura do trabalho absolutamente novo que temos à frente, devemos decidir abandonar sem reserva os conceitos fundamentais com que até então representamos os sujeitos do político (o homem e o cidadão com seus direitos, mas também o povo soberano, os trabalhadores etc.) e reconstruir nossa filosofia política a partir dessa única figura.

2. A primeira aparição dos refugiados como fenômeno de massa tem lugar no fim da primeira guerra mundial, quando a queda do Império russo, austro-húngaro e otomano e a nova ordem criada por tratados de paz perturba profundamente a ordem demográfica e territorial da Europa centro-oriental. Em pouco tempo, mudam-se de seus países 1.500.000 russos brancos, 700.000 armênios, 500.000 búlgaros, 1.000.000 de gregos, centenas de milhares de alemães, húngaros e romenos. A essa massa em movimento, vai aderida a situação explosiva determinada pelo fato de que cerca de 30% das populações dos novos organismos estatais criados por tratados de paz sob o modelo do Estado-Nação (por exemplo, na Iugoslávia e na Tchecoslováquia) constituíam minorias que deveriam ser tuteladas por meio de uma série de tratados internacionais (isto é, Minority Treaties), que remanesceram, grande parte, letra morta. Alguns anos mais tarde, a lei racial na Alemanha e a guerra civil na Espanha disseminaram pela Europa um novo e importante contingente de refugiados.
Nós estamos habituados a distinguir entre apátridas e refugiados, mas nem então, nem hoje, a distinção é simples como pode parecer à primeira vista. Desde o início, muitos refugiados, que não eram tecnicamente apátridas, preferiram tornar-se a retornar à pátria (é o caso dos hebreus polacos e romenos que se encontravam em França ou na Alemanha no fim da guerra e, hoje, dos perseguidos políticos e daqueles para os quais o retorno à pátria significa a impossibilidade de sobreviver). De outra parte, os refugiados russos, armênios e húngaros foram prontamente desnacionalizados pelo novo governo soviético, turco etc. É importante notar como, a partir da primeira guerra mundial, muitos Estados europeus começaram a introduzir leis que permitiam a desnaturalização e a desnacionalização dos próprios cidadãos: primeiro a França, em 1915, em relação a cidadãos naturalizados de origem “inimiga”; em 1922, o exemplo foi seguido pela Bélgica, que revogou a naturalização dos cidadãos que haviam cometido atos “antinacionais” durante a guerra; em 1926, o regime fascista editou uma lei análoga com respeito aos cidadãos que se mostravam “indignos da cidadania italiana”; em 1933, foi a vez da Áustria e, dessa maneira, até 1935, quando a Lei de Nuremberg divisara os cidadãos alemães de pleno direito e cidadãos sem direitos políticos. Essa lei – e a apatrídia de massa em que resultou – marcam uma reviravolta decisiva na vida do Estrado-nação moderno e a sua definitiva emancipação das noções ingênuas de povo e de cidadão.

Não é este o lugar para refazer a história dos diversos comitês internacionais por meio dos quais os Estados, a Sociedade de Nações e, mais tarde, a ONU procuraram fazer frente ao problema dos refugiados, desde o Bureau Nansen para os refugiados russos e armênios (1921), ao Alto Comissariado para os refugiados da Alemanha (1936), ou do Comitê intergovernamental para os refugiados (1938), passando pela International Refugee Organization da ONU (1946), até chegar ao atual Alto Comissariado para os refugiados (1951), cuja atividade não possui, segundo o estatuto, caráter político, mas apenas “humanitário e social”. O essencial é que, uma vez que os refugiados não representam mais casos isolados, mas um fenômeno de massa (como ocorre entre as duas guerras, e novamente agora), tanto essas organizações quanto os próprios Estados, malgrado a solene invocação dos direitos inalienáveis do homem, mostram-se absolutamente incapazes não apenas de resolver o problema, mas também, simplesmente, de enfrentá-lo de maneira adequada. A inteira questão fora, dessarte, transferida às mãos da polícia e das organizações humanitárias.

3. As razões dessa impotência não estão apenas no egoísmo e na limitação dos aparatos burocráticos, mas na ambiguidade das próprias noções fundamentais que regulam a inscrição do nativo (isto é, da vida) no ordenamento jurídico do Estado-nação. H. Arendt intitulara o capítulo quinto do livro sobre o Imperialismo, dedicado ao problema dos refugiados, O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem. Necessário tentar levar a sério essa formulação, que vincula indissoluvelmente as sortes dos direitos do homem e do Estado nacional moderno, de modo que o ocaso deste implica necessariamente a obsolescência daqueles. O paradoxo é aquele em que a própria figura – o refugiado – que deveria encarnar por excelência os direitos do homem marca, ao contrário, a crise radical desse conceito. “A concessão dos direitos do homem”, escreve H. Arendt, “baseada sobre a suposta existência de um ser humano como tal, arruína não apenas aqueles que a professavam, mas se encontraram, pela primeira vez, defronte a homens que haviam verdadeiramente perdido qualquer outra qualidade e relação específica, exceto o puro fato de serem humanos”. No sistema do Estado-nação, os assim chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela no momento em que não é mais possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado. Isso está implícito, se bem se reflete, na ambiguidade do próprio título da declaração de 1789: Declaração dos direitos do homem e do cidadão, em que não é claro se os dois termos nomeiam duas realidades distintas, ou formam, ao revés, uma díade na qual o primeiro termo é, em verdade, sempre, e desde logo, conteúdo do segundo.

Que algo como o puro homem em si não possua, no ordenamento político do Estado-nação, qualquer espaço autônomo, isso é evidente ao menos pelo fato de que o estatuto do refugiado fora sempre considerado, ainda que no melhor dos casos, como uma condição provisória que deve conduzir ou à naturalização ou à repatriação. Um estatuto estável do homem em si é inconcebível no direito do Estado-nação.

4. É tempo de deixar de olhar a Declaração dos direitos de 1789 até hoje como proclamação de valores eternos, meta-jurídicos, tendentes a vincular o legislador a seu respeito, e de considerá-la segundo aquela que é a sua função real no Estado Moderno. Os direitos do homem representam, em verdade, sobretudo a figura originária da inscrição da vida nua natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela vida nua (a criatura humana) que, no Ancien Régime, pertencia a Deus e, no mundo clássico, era claramente distinta (como zoé) da vida política (bios), entra agora em primeiro plano no controle do Estado e se torna, por assim dizer, o seu fundamento terreno. Estado-nação significa: Estado que faz da natividade, do nascimento (isto é, da vida nua humana) o fundamento da própria soberania. Este é o sentido (sequer demasiadamente oculto) dos primeiros três artigos da Declaração de 1789: somente porque se inscrevera (arts. 1º e 2º) o elemento nativo no coração de toda associação política, essa pode unir inextricavelmente (art. 3º) o princípio da soberania à nação (em conformidade com o étimo, natio significa, na origem, simplesmente “nascimento”).

As Declarações de direitos serão agora vistas como lugar em que se efetua a passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Essas asseguram a inserção da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à queda do Ancien Régime. Que, por meio disso, o súdito se transforme em cidadão, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural – torna-se, aqui, pela primeira vez (com uma transformação cujas consequências biopolíticas apenas agora somos capazes de começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O princípio de natividade e o princípio de soberania, separados no Ancien Régime, unem-se a partir de agora irrevogavelmente, a fim de constituir o fundamento do novo Estado-nação. O engodo implícito é que o nascimento torna-se imediatamente nação, de modo que não possa haver qualquer intervalo entre os dois momentos. Os direitos são, pois, atribuídos ao homem apenas na medida em que ele é pressuposto imediatamente evanescente (ainda que não deva vir a lume como tal) do cidadão.

5. Se o refugiado representa, no ordenamento do Estado-nação, um elemento de tal sorte inquietante é, sobretudo, porque ao estilhaçar a identidade entre homem e cidadão, entre natividade e nacionalidade, coloca-se em crise a invenção originária da soberania. Singulares exceções a esse princípio, naturalmente, sempre existiram: a novidade do nosso tempo, que ameaça o Estado-Nação em seu próprio fundamento, é que porções crescentes da humanidade não são mais representáveis em seu interior. Por isso, ao passo em que é destruída a velha trindade Estado-Nação-Território, o refugiado, essa figura aparentemente marginal, merece ser, ao revés, considerado como a figura central de nossa história política. É bom não esquecer que os primeiros campos foram constituídos na Europa como espaço de controle para os refugiados, e que a sucessão campo de internação-campo de concentração-campo de extermínio representa uma filiação perfeitamente real. Uma das poucas regras a que os nazistas se ativeram no curso da “solução final” era a de que apenas depois de terem sido completamente desnacionalizados (mesmo daquela cidadania de segunda classe que os aguardava logo depois da lei de Nuremberg), os hebreus e os ciganos podiam ser enviados aos campos de extermínio. Quando os seus direitos não são mais direitos do cidadão, agora o homem é verdadeiramente sacro, no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico: entregue à morte.

6. Necessário libertar resolutamente o conceito de refugiado daquele de direitos do homem, e cessar de considerar o direito de asilo (de resto, hoje em vias de drástica contração nas legislações dos Estados europeus) como a categoria conceitual na qual se inscreve o fenômeno (um olhar sobre o recente Tesi sul diritto d’asilo de A. Heller mostra que, hoje, isso não pode senão conduzir a confusões inoportunas). O refugiado é considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito-limite que põe em radical crise os princípios do Estado-nação e, conjuntamente, permite conduzir o campo a uma renovação categorial contemporaneamente inadiável.

No entretempo, em verdade, o fenômeno da assim chamada imigração ilegal nos países da Comunidade Européia assumira (e assumirá cada vez mais nos próximos anos, com os previstos 20 milhões de imigrantes dos países da Europa Central) caracteres e proporções tais a justificar plenamente esse deslocamento de perspectiva. Tanto que os Estados industrializados estão, hoje, defronte a uma massa estavelmente residente de não-cidadãos, que não podem nem querem ser naturalizados ou repatriados. Esses não-cidadãos adensaram uma nacionalidade de origem, mas enquanto preferem não usufruir da proteção de seu Estado, vêm a encontrar-se, como os refugiados, na condição de “apátrida de fato”. T. Hammar propusera usar, para esses residentes não-cidadãos, o termodenizens, que tem o mérito de mostrar como o conceito citizen pode ser desde logo inadequado para descrever a realidade político-social dos Estados modernos. De outra parte, os cidadãos dos Estados industriais avançados (tanto nos Estados Unidos como na Europa) manifestam, através de uma crescente deserção em face das instâncias codificadas de participação política, uma propensão evidente a transformarem-se em denizensb imiscuindo-se, ao menos em certas faixas sociais, em uma zona de potencial indistinção. Paralelamente, em conformidade com o conhecido princípio segundo o qual a assimilação substancial em presença de diferenças formais exaspera o ódio e a intolerância, crescem as reações xenófobas e a mobilização defensiva.

7. Antes que reabramos na Europa os campos de extermínio (o que está começando a ocorrer), é necessário que os Estados-nações encontrem coragem para colocar em questão o próprio princípio de inscrição da natividade e a trindade Estado-nação-território em que isso se funda. Não é fácil indicar desde logo os modos pelos quais isso poderá concretamente advir. Basta, aqui, sugerir uma possível direção. É sabido que uma das opções examinadas pela solução do problema de Jerusalém é que essa se torna, contemporaneamente, e sem repartição territorial, capital de dois diferentes organismos estatais. A condição paradoxal de recíproca extraterritorialidade (ou melhor, de aterritorialidade) que isso implica poderia ser generalizada como o modelo de novas relações políticas internacionais. Ao invés de dois Estados nacionais separados por incertas e ameaçadas fronteiras, seria possível imaginar duas comunidades políticas insistentes sobre uma mesma região, e ambas em êxodo, articuladas entre si por uma série de recíproca extraterritorialidade, na qual o conceito-chave não seria mais o ius do cidadão, mas o refugium do indivíduo. Em sentido análogo, podemos ver a Europa não como uma impossível “Europa das nações”, na qual já se entrevê a catástrofe a curto prazo, mas como um espaço aterritorial, ou extraterritorial, no qual todos os residentes dos Estados europeus (cidadãos e não-cidadãos) estariam em posição de êxodo ou de refúgio, e o estatuto de europeu significaria o estar-em-êxodo (obviamente ainda imóvel) do cidadão. O espaço europeu demarca, assim, um intervalo irredutível entre o nascimento e a nação, no qual o velho conceito de povo (que, como sabido, é sempre minoria) poderia reencontrar um sentido político, contrapondo-se decisivamente àquele de nação (que, até então, o teria indevidamente usurpado).

Esse espaço não coincide com qualquer território nacional homogêneo, nem com a resultante topográfica, mas age sobre eles, perfurando-os e articulando-os topologicamente, como uma garrafa de Leyden ou uma banda de Moebius, em que externo e interno se indeterminam. Nesse novo espaço, a cidade européia, entrando em relação de recíproca extraterritorialidade, reencontraria a sua antiga vocação de cidade do mundo.

Em uma espécie de terra de ninguém entre o Líbano e Israel, encontram-se, hoje, quatrocentos e vinte e cinco palestinos expulsos do Estado de Israel. Esses homens constituem certamente, segundo a sugestão de H. Arendt, “a vanguarda de seu povo”. Porém, não necessariamente, ou não apenas, no sentido segundo o qual esses formariam o núcleo originário de um futuro Estado nacional que resolveria o problema palestino provavelmente de modo tão insuficiente quanto Israel resolvera a questão hebraica. Ao contrário, a terra de ninguém em que esses são refugiados retroagira, já, sobre o território do Estado de Israel, perfurando-o e alterando-o de maneira que a imagem daquela pequena montanha coberta de neve é tornada mais interior que qualquer outra região de Heretz Israel. Apenas em uma terra em que os espaços dos Estados serão estados desse modo perfurados e topologicamente deformados, e nos quais o cidadão terá sabido reconhecer o refugiado que ele mesmo é, é pensável, hoje, a sobrevivência política dos homens.



Tradução do original, em italiano, AGAMBEN, Giorgio. Al di là dei diritti dell’uomo. In: Mezzi senza fine: notte sulla politica. Torino: Bolatti Boringhieri, 1998, p. 20-29.

·· Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP) e advogado. Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR).